Conheça casais que romperam a barreira do preconceito para construir relacionamento amoroso

É difícil acreditar que pode acontecer, assim, de repente. De uma hora para outra, tudo muda: os planos na faculdade, a carreira, a viagem marcada no final do ano. André e Ermycleide tinham 28 anos. Eliane tinha 49. Adelino, 56. Apaixonar-se é repentino, ninguém espera.
Logo no primeiro encontro, André da Silva levou um pequeno vaso de azaléia e uma caixa de bombons em formato de coração a Ermycleide Alcantara, ou apenas Cleide, como é chamada pelos conhecidos. As flores simbolizavam a paixão, e o chocolate adoçava o encontro romântico.
Cleide e André combinaram de se encontrar em um restaurante de Uberlândia, pequena cidade situada no Triângulo Mineiro, onde ele mora. Entraram no local para o encontro da mesma forma que os outros casais. “Meu bem, as pessoas estão olhando”, avisa Cleide. Ela acena e sorri.
Eliane e Adelino Ozores esperavam o ônibus. Optaram por não pegar o carro naquele dia e sabiam que, como diversas vezes já acontecera, estavam expostos a situações chatas e embaraçosas. O problema não era só a incerteza da chuva ou o atraso do ônibus parado no meio do trânsito.
“Nossa, você é uma guerreira”, diz o desconhecido.
“Nossa, que corajosa”, afirma o outro.
Cleide e André são deficientes físicos, namoram há mais de quatro anos, noivaram há um, e pretendem se casar. Ela tem os pés tortos congênitos, uma anomalia em que o bebê nasce com um ou os dois pés torcidos. Ele desenvolveu retinose pigmentar, doença degenerativa e sem cura que afeta a capacidade da retina em transformar a luz visível em impulso nervoso ao cérebro. Um baque aos 17 anos: a doença se agravou e André teve uma perda quase total da visão.
A deficiência física de Cleide dificultou não só a sua locomoção, mas trouxe diversas outras consequências, frutos do preconceito. Para os médicos, ela não andaria. Até os quatro anos de idade, Cleide apoiava-se apenas em seus joelhos. “Você é Deus?”, perguntou Cleide, quando criança, ao médico, conforme conta sua mãe lembrando-se da situação no consultório.
Aos 19 anos, Adelino servia ao exército como muitos garotos de sua idade. Ele costumava viajar ao litoral, onde seu grupamento se reunia para os treinamentos. Em uma dessas viagens para a praia de Itararé, em São Vicente, o rumo de sua vida mudou.
Um salto. Após seguir seus colegas de exército em uma atividade na beira do mar, preparou-se para acompanhá-los. “Fui mergulhar de uma pedra. E eles estavam todos ali, com a água na altura do pescoço. Ou seja, uma profundidade boa. Quando eu mergulhei, tinha um banco de areia. Como se tivesse uma plaquinha com meu nome lá e o banco de areia me esperando. Foi quando eu tive uma lesão na cervical. E parou tudo”, relembra Adelino.
Foi assim que seus movimentos corporais foram prejudicados. Tornou-se tetraplégico. Teve que se adaptar à nova realidade, que já o acompanha há 40 anos.

Além da primeira impressão

Um dos grandes problemas que as pessoas com deficiência enfrentam na hora de se relacionar é que tais características a rotulam em relação à sociedade e acabam sobressaindo ao primeiro olhar. Assim, as pessoas são privadas de se conhecerem de uma forma mais profunda, completa e humana.
“As pessoas acabam explorando a imagem do coitadinho, aquele que sofre, que está à margem da sociedade. Ou então vão para o outro extremo, transformando essa pessoa em super-herói, como se todos os dias ela superasse um obstáculo, um desafio”, analisa Eliane Ozores, psicóloga especializada no acompanhamento de deficientes com lesão medular e, inclusive, casada com Adelino.
Antes de se mudar para São Paulo e ficar noiva de André, Cleide morava na Paraíba e teve outros relacionamentos que não deram certo. Um dos motivos? Preconceito. A pressão veio, não apenas da família do garoto, mas também da sua própria. “No meu primeiro namoro nós sofremos muito, porque ele era negro, e a minha família era meio resistente. A dele também, mas porque eu era deficiente”, conta Cleide, exemplificando que o preconceito pode estar em qualquer lugar. A passagem só de ida de Cleide para São Paulo era de sua irmã, que estava indecisa. “Meia noite, a viagem era às seis horas da manhã. Eu joguei as minhas coisas em uma mala e falei: ‘Eu vou no seu lugar’. Vim sozinha”, relembra ela.
Em uma famosa casa noturna da cidade, Cleide conversava com um rapaz quando, momentos depois, ele percebeu a sua deficiência. Mesmo interessado na conversa, ficou bravo e a deixou de lado. “Eu acostumo, mas não aceito”, desabafa Cleide, que, mesmo enfrentando situações como essas, não deixa de sair para se divertir.
A primeira vez que falou com André foi por um bate-papo online da Renovação Carismática Católica, movimento da Igreja Católica. Apesar da distância entre Uberlândia e São Paulo, as horas de viagem nunca foram um problema.
“Eu percebi que ela era uma mulher muito bela”, conta André, lembrando da primeira vez que se encontraram na estação Santa Cruz do metrô de São Paulo e se dirigiram a um restaurante próximo. A conversa estava tão boa, diz André rindo, que eles foram os últimos a deixar o local, já de noite.
André está cursando o último ano da faculdade de Educação Física e pretende seguir na área acadêmica. Assim que se formar, sonha se casar com Cleide, que já é formada em Música. Para ela, ao morarem juntos, os dois terão necessidades distintas para serem independentes. Ao mesmo tempo, um pode ajudar no que o outro tem dificuldade para fazer.

                        Aceitação da família

O relacionamento de deficientes físicos, tanto entre si, como com as pessoas que não possuem deficiência, acaba tornando-se um desafio ainda maior quando a família tem dificuldade em aceitá-lo. Eliane conta o caso de uma paciente que adquiriu paraplegia ao levar um tiro e que gostava de outro rapaz cadeirante. A mãe não aprovava. “Ela dizia: ‘Eu não quero. Duas cadeiras de rodas na minha casa eu não quero. É muito para mim’. Então, a gente percebe que isso também é uma relutância muito grande da família”, conta Eliane.


Cerca de 35%, dentre as 5,9 milhões de mulheres da cidade de São Paulo, possuem algum tipo de deficiência. Enquanto nos homens este número cai para aproximadamente 26% dos 5,3 milhões, de acordo com o Censo de 2010.
Além de mais numerosas na população com deficiência, elas são também mais generosas, segundo Eliane. A psicóloga diz que é mais comum a mulher cuidar de seu companheiro quando este adquire deficiência do que o homem cuidar de sua parceira na mesma situação. Normalmente, eles acabam deixando a mulher com a família dela.
O mesmo serve para deficientes congênitos, que nascem com a limitação física: menos homens se relacionam com mulheres deficientes do que o contrário.
“Se a gente pensar no universo da pessoa com deficiência, você acaba precisando suprir necessidades e cuidados do dia a dia. Os homens têm um pouco mais dessa dificuldade. E isso também está diretamente ligado à nossa cultura. Nós, mulheres, crescemos brincando com bonecas, a gente aprende a dar banho, a alimentar, a trocar fralda. E os meninos, não”, avalia a psicóloga.
Porém, Eliane acha que devemos tomar cuidado ao julgar uma pessoa que não se vê em condições de cuidar do companheiro que adquire uma deficiência sem antes saber o que a motivou a fazer essa escolha. “Antes de a gente afirmar que alguém foi desumano, é preciso entender quais são os processos emocionais e psíquicos daquela pessoa para tomar uma decisão”, ressalva.

Entre Rodas & Amor

O relacionamento de Eliane com seu marido Adelino exemplifica a sua percepção: uma mulher sem deficiência com um companheiro tetraplégico. Eles se conheceram pela internet, ele por ser um dos primeiros militantes na luta pelos direitos dos deficientes e ela pelo seu trabalho como psicóloga na área.
Hoje, eles trabalham juntos no Instituto Entre Rodas & Batom, onde Adelino é presidente e Eliane é diretora de gestão. O intuito da organização é lutar não apenas pela igualdade social para deficientes, mas também pela igualdade de gênero das mulheres. Rodas representam o movimento, Batom, a feminilidade. Paralelamente, ele realiza projetos na prefeitura da cidade de São Paulo ligados à acessibilidade.
As dificuldades que sempre atrapalharam a rotina de Adelino parecem, atualmente, não ser mais tão incômodas. Encontrou em Eliane uma amiga, uma colega de trabalho, uma companheira para o resto da vida. “Eu falo que ela me resgatou da solteirice. Eu estava solteiro havia 56 anos”, brinca.
André se sente completo. Compartilha dos mesmos interesses com sua cara metade, sua alma gêmea. Ainda com pouco tempo para ficarem juntos em dias de trabalho, ele mostra o quão recompensador é estar com a pessoa que ama. “A gente tem as mesmas ideias, pensamos parecido. Queremos buscar um mundo melhor, queremos buscar coisas melhores. E é superagradável, superamável estar junto com a Eliane”, relata.
Ainda assim, os deficientes físicos não são os que mais têm dificuldades de se relacionar. “A gente vê muito mais cegos que se casam com pessoas videntes e o cadeirante que se casa com uma pessoa que não tem uma deficiência física. Esses seriam os casais mais comuns”, afirma Eliane. O deficiente que mais sofre com relacionamentos, segundo a psicóloga, é o intelectual. “A família, que muitas vezes superprotege, não quer que ele se relacione, que ele tenha uma atividade, uma vida sexual saudável”, explica a psicóloga.
Dentre os deficientes físicos, os surdos, ou deficientes auditivos, são os que mais frequentemente acabam se relacionando com um parceiro da mesma comunidade. “Eles se fecham muito em si, por conta até de uma limitação na comunicação”, conta.
Eliane acredita que os avanços que têm sido desenvolvidos ultimamente, principalmente os tecnológicos, são importantes. Porém, a cultura das pessoas ainda precisa mudar. “Ou a gente muda essa maneira de olhar o diferente, ou realmente a gente vai caminhar para um abismo, onde cada um segue o seu caminho e as pessoas não se relacionam, não se olham, não se cuidam.”

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